domingo, 24 de fevereiro de 2008

A verdadeira face de Cuba

Freqüentemente se ouve falar sobre Cuba. Afinal, não é qualquer um que pode dizer que enfrentou a maior potência do planeta, frente a frente, sem pestanejar. Mas será que Cuba e Fidel Castro, ditador que governou o país por quase meio século, são mesmo esses mocinhos que socialistas e "revolucionários" que usam a camisa de Che Guevara apesar de nunca sequer terem ouvido falar em Karl Marx insistem em proclamar?

Se você for fazer turismo em Cuba, terá a impressão de que a ilha é um verdadeiro paraíso tropical. Muita música, rum e charuto trazem ao lugar um aspecto paradisíaco, apenas escondendo a realidade do povo. A realidade fica bem evidente no depoimento que uma mulher, que prefere não se identificar, deu à revista Época. O relato dela está transcrito integralmente no texto abaixo:


Embora o aspecto seja paradisíaco, há muita miséria neste país. A pior de todas é a miséria moral, a cultura da mentira. Mas isso o turista não percebe...

Meu marido era diplomata e foi servir em Cuba. Eu incentivei a escolha, principalmente em razão do nosso filho que estava para nascer, pensando que nada lhe faltaria: teria os alimentos básicos, vacina, um bom pediatra... era isso que importava, não estava preocupada com pequenos confortos supérfluos e acreditava piamente que não passaria nenhum tipo de necessidade. Doce ilusão... Não consegui as vacinas para o bebê. Tive de pedir a amigos que as trouxesse do Brasil, embora Cuba exporte a vacina. Como entender, se lá estão sempre em falta?

Descobri que em Cuba você não tem empregados, todos os trabalhadores são funcionários públicos. Você contrata uma empresa (Cubalse) e paga dez vezes o valor que é repassado ao trabalhador (explorado). Logicamente contratei uma babá no mercado negro. Pagava a ela US$ 100,00, o que era uma verdadeira fortuna em termos cubanos, uma vez que esta senhora era enfermeira formada e recebia US$ 10,00 de aposentadoria e o marido, médico, outros US$ 15,00. A família estava numa tal situação de penúria que um dia vi que ela recolheu do lixo umas peles de frango que eu havia jogado fora. Com aquilo ela pretendia fazer uma canja, e estava satisfeitíssima.

Além dessa senhora eu tinha também uma empregada que fazia o serviço de casa. A situação desta outra era bem melhor que a da babá, pois o marido trbalhava num bar e ganhava gorjetas em dólares. Esse é outro problema de Cuba: os jovens estão parando de estudar, pois vale mais a pena trabalhar com turistas, onde podem receber um pouco mais.

Tratar a todos de forma igual nem sempre é justo, muitas vezes beneficia o preguiçoso. Assim eu me sentia quando ia a uma das feiras. Havia muito pouco o que comprar, e em moeda cubana nada era barato. Ora, se o agricultor colher vinte cebolas, receberá por elas US$ 5,00; se colher duzentas, receberá US$ 5,00; se colher duas mil, seu prêmio será o mesmo. Solução: comida de potinho comprada no Diplomercado. Não me pergunte o que as crianças cubanas comem, não consegui descobrir.

O que me deixava louca era a forma como eles mentiam. No prédio onde eu morava, quando aluguei o apartamento me garantiram
que não havia nenhum problema com o abastecimento de água. Ocorreu que, pelo menos três vezes por semana, não havia água nas torneiras. Fui pedir a um administrador do prédio que me avisasse um pouco antes para que pudesse armazenar um pouco de água ou me programar de forma que não me pegasse desprevenida. Ele me olhou, sorriu e disse: "Neste prédio nunca falta água". Tentei argumentar, ele respondeu categoricamente a mesma coisa. Entendi o recado... e era o mesmo que a TV noticiava todos os dias: Cuba era a ilha da fantasia, nada de ruim acontecia lá... Fidel distribuía diplominhas de alfabetização e na reportagem seguinte, de forma muito didática, apareciam crianças brasileiras com os dedos decepados pelo trabalho...

Toda a miséria de Cuba é culpa do embargo [econômico, imposto pelos Estados Unidos após descobrirem que em plena Guerra Fria Fidel Castro havia permitido que a União Soviética instalasse em solo cubano mísseis de grande alcance e com orgivas nucleares]. É ele [o embargo econômico] quem mantém Fidel no poder, porque os cubanos acreditam nisso e não vêem que nada produzem, além de cana-de-açúcar (rum), em uma quantidade que para nós é insignificante, e charutos. O resto chega por navios. Ou não chega.

O controle da população é incrivelmente eficaz. Fidel institucionalizou a fofoca. Em cada quadra existe um CDR (Centro de Defesa da Revolução) onde vizinhos se reúnem para proteger o regime. Lembro-me que certa vez meu esposo emprestou um livro de poesias a um garagista do prédio... o rapaz foi visto lendo o livro e foi inquirido se as poesias eram marxistas ou anti-marxistas.

Os bons comunistas têm algumas regalias, os melhores empregos, os melhores colégios para os filhos e outras vantagens. Os que não concordam acabam por ser punidos, de uma forma ou de outra. Além disso, muita gente continua morrendo "comida por tubarões".

Apesar de todas as dificuldades, eu não pensava em voltar ao Brasil, mas tive de retornar muito precocemente e sem o meu esposo, que faleceu vítima de um erro de diagnóstico, aos trinta anos. Ele sofreu um típico infarto em casa (não sou médica, mas todos os sintomas eram de infarto) e eu corri ao Hospital Cardiovascular de Havana, onde me disseram que meu marido estava bem (fui tratada como louca) e, depois de deixá-lo esperando sentando num banco por pelo menos duas horas sem socorro, ignorado pelos médicos, pedi que lhe dessem alta, pois via que a situação estava se agravando. Ao chegar ao carro ele começou a ter convulsões, e eu fui correndo chamar o médico que, com muita má vontade, chegou na janela do carro e disse a ele que respirasse devagar. Inconformada e desesperada, levei-o imediatamente para a Clínica Cira Garcia, onde o primeiro diagnóstico foi hipoglicemia. Depois me disseram que na verdade ele estava tendo uma embolia pulmonar, mas que o caso era simples, embora necessitasse de uma UTI. Transferiram meu marido para o terceiro hospital, Hermanos Almejeras. Lá o médico veio conversar comigo, confirmou o diagnóstico de embolia pulmonar e me disse que ficasse calma, pois ele estaria bem e em poucos minutos eu poderia vê-lo... Não houve tempo: ele faleceu antes disso. Uma semana depois recebo o atestado de óbito com o laudo do exame necrológico: Infarto agudo do miocárdio. Não creio que seja necessário descrever toda a minha dor, mas a minha revolta, esta sim, sempre fiz questão de revelar, pois após todo esse episódio escrevi uma carta ao Ministério da Saúde de Cuba, denunciando principalmente a maneira desumana como meu marido foi tratado no Hospital Cardiovascular. Fiz isso não por mim, nem por meu marido, mas por todos os cubanos, que não podem nem reclamar. Obtive uma resposta cínica onde simplesmente me disseram que a demora no atendimento não tinha nexo com o falecimento do Marcus.

Não houve realmente demora, o que faltou foi diagnóstico e dignidade. O preço que paguei por acreditar em Cuba foi alto demais. Por isso, mais que testemunha, sou vítima e infelizmente não sou a única. Não sei qual o futuro de Cuba, nada tenho contra Fidel, amo esse povo oprimido, que soube ser solidário comigo na minha dor, mas não creio que a situação possa se manter por muito tempo. Quarenta anos é demais e se o povo estivesse satisfeito não haveria necessidade de censura. Estou certa de que as coisas vão mudar, apenas não sei se vão melhorar ou piorar.



Os meios de comunicação oficiais em Cuba tentam encobrir os fatos, mostrando que a educação no país é de alto nível e que o sistema de saúde é comparável ao de primeiro mundo. Fidel Castro trabalhou duro para passar uma imagem positiva do país, o que fez com que Cuba permanecesse numa posição invejável na lista dos países com melhor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).

A situação do país caribenho, porém, pode mudar, agora que Fidel Castro renunciou ao cargo. Seu irmão, Raúl Castro, admite que o país precisa de reformas urgentes e, embora em declarações ele tenha dito que continuará mantendo o regime socialista em Cuba, a situação parece que vai melhorar, mesmo que seja pouco.

Afinal, a esperança é a última que morre. Os cubanos merecem melhoras agora, depois de quase meio século em que foram impedidos de sonhar.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

A rede do bispo


Há tempos a Rede Record vem investindo em qualidade na sua programação. Isso fica bem evidente com o aparecimento, nos últimos tempos, de seriados como Dr. House e Heroes, de efeitos especiais caríssimos empregados na novela Caminhos do Coração e em programas super criativos como O Aprendiz ou Troca de Família. Na verdade, essa melhora com relação à Record dos anos 90 veio da vontade do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, dono da emissora desde 1989, de peitar a Rede Globo, líder absoluta de audiência desde a queda da TV Tupi.

Se por um lado a Rede Record surpreende pela grade, por outro peca ao não demonstrar muito respeito pelo telespectador. Assim como o SBT, de Sílvio Santos, que a Record vem tentando superar, lutando pelo segundo lugar em audiência entre as emissoras do país, a rede de televisão do bispo cai na mesma armadilha de mudar o horário das programações sem aviso prévio.

Quando anunciou que exibiria a série Heroes, uma das mais bem-sucedidas nos Estados Unidos, foi uma festa de marketing: nos intervalos da Record mostravam reportagens de jornais mostrando como o seriado era um sucesso na TV paga e anunciando pra quem quisesse ouvir que Heroes já havia ultrapassado em audiência nos EUA a famosíssima Lost (exibida no Brasil, aliás, pela Rede Globo). Todo domingo, às 21h00, o público poderia se deleitar com os heróis que tentariam salvar Nova York de uma explosão nuclear.

Até aí, tudo bem. A Record maravilhava os telespetadores com a variedade na programação, oferecendo uma alternativa para aqueles que não gostam do Fantástico ou não querem ver os filmes noobs que o SBT exibe no 8 e meia no cinema - que sempre começa às nove, diga-se de passagem. A mostra do problema veio pouco depois, quando Edir Macedo decidiu estender a cópia mal-feita do Fantástico, o Domingo Espetacular. Heroes passou a começar às 22h00. Tudo bem, isso ainda dá pra aturar. Mas de repente, com a estréia da TV digital, a Record resolveu que seria melhor exibir o filme antes da série, que foi jogada para as 23h00. Como se isso não bastasse, de repente, sem aviso prévio, dois filmes passaram a compor a programação de domingo antes de Heroes que, finalmente, não começava antes da meia-noite. Quando achávamos que seria a cartada final, a rede que almeja a liderança em audiência jogou a série para as segundas-feiras, às 00h00.

Com isso, várias pessoas desistiram de acompanhar Heroes pela Record. Em uma comunidade do Orkut, vários são os telespectadores que falam em boicote à emissora, pela excessiva falta de respeito ao público. E à inteligência dele também.

Neste último domingo, foi ao ar no Domingo Espetacular uma matéria defendendo a Igreja Universal com unhas e dentes de artigos publicados nos jornais O Globo e Folha de S. Paulo, que não faziam nada mais do que revelar o caráter mercantilista da igreja, interessada apenas no lucro. Isso no jornalismo "eficiente" da Record, que se diz muitíssimo imparcial, muito obrigado. Tudo esse teatro como se o público não soubesse que o dono da Record é o bispo Edir Macedo, o bendito que é dono também da Igreja Universal. A reportagem foi tão fútil e manipuladora que algumas pessoas em um site de relacionamentos, num tópico destinado à Rede Record, chegaram a dizer que sentiram um tremendo asco quando a reportagem acabou.

Sabemos muito bem onde a Rede Record quer chegar: ao topo. Mas com certeza este não é o caminho. Não é dando uma de SBT, trocando os horários como se troca de roupa, não é dando uma de clone, imitando descaradamente as programações da Globo, não é dando uma de advogado do diabo, exibindo reportagens sensacionalistas e manipuladoras que a rede do bispo vai conseguir seu lugar ao sol, até porque os telespectares não são burros, e brincar com sua inteligência é sempre catastrófico - vide Gugu, que nunca recuperou sua audiência após fingir que entrevistava líderes do PCC.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Por dentro da Matrix

Nesta última semana tive que assistir Matrix, para um trabalho na faculdade sobre ética em computação. Aí percebi como esse filme é bem mais do que aparenta ser... Uma obra inteligentíssima dos irmãos Wachowski. É interessante perceber que tudo o que está ali pode ser verdade! Opa, ficou chocado? Confuso?

Para as poucas almas que não viram Matrix, ele conta a história do hacker Thomas (Keanu Reeves), também chamado de Neo, que encontra um cara cheio de truques chamado Morpheus (Laurence Fishburne). Ele toma uma pílula vermelha e descobre então que todo o nosso mundo é uma realidade simulada por computadores, um enorme mundo virtual chamado Matrix. A verdadeira realidade é um futuro em que as máquinas tomaram conta do mundo e mantêm os humanos em pequenas cápsulas, onde sua energia é usada para abastecer um gigantesco sistema de inteligência artificial enquanto a mente deles é mantida em uma espécie de sonho que chamamos de realidade. Morpheus é o líder de um grupo de rebeldes que quer nos libertar das máquinas e acredita que Neo é o esperado salvador da humanidade, algo como um novo messias. Depois de muito treinamento, golpes de kung-fu, roupas sombrias e armas pesadíssimas, Neo consegue transcender a realidade de Matrix, desafiar as leis da física e ganhar poderes sobre-humanos.

Agora olhe à sua volta. Perceba os detalhes da sua cadeira, do lugar em que você está, da textura das suas roupas, do barulho na rua e das cores da parede da sua casa. Parecem reais? Eles não poderiam ser, por exemplo, uma simulação feita por um enorme sistema de inteligência artificial? Você pode achar que não, porque eles sempre estiveram ali e ao contrário dos computadores, cadeiras e paredes nunca travaram de uma hora para outra. Mas pense novamente. Existem muitas pessoas, muito inteligentes, que acham que isso pode ser verdade. Para elas, o mundo talvez não seja como imaginamos. Há até quem acredite que temos 25% de chances de viver mesmo em uma simulação de computador. Ou seja, talvez a trilogia iniciada em 1999 com o filme Matrix não seja tão despropositada quanto parece.

O enredo do filme não traz só questões filosóficas. Matrix é uma salada de vários tipos de arte feita pelos enigmáticos irmãos Larry e Andy Wachowski, responsáveis pelo roteiro e direção do filme. Entre as poucas informações que circulam a respeito deles está a de que devoram todo tipo de livro, de tratados filosóficos a histórias em quadrinhos. Talvez por isso, o filme tem ligações com muitas tecnologias e previsões feitas hoje pelos cientistas, além de citações a várias obras literárias. Os pequenos detalhes escondidos nas cenas do filme foram um dos principais fatores que levaram o DVD a bater recordes. Os fãs assistiam dezenas de vezes para perceber, por exemplo, que os objetos são predominantemente verdes no mundo da simulação e azuis na realidade. No entanto, a área de onde os diretores mais tiraram citações, nomes e referências foi o campo das religiões.

Os humanos eram ignorantes do que não podiam ver. Havia muitas ilusões, como se eles estivessem mergulhados no sono e se encontrassem em pesadelos. Eles estavam fugindo, perseguindo outros, envolvidos em ataques, caindo de lugares altos ou voando mesmo sem ter asas. Quando acordam, eles não vêem nada. Ao deixar a ignorância de lado, não estimam suas obras como coisas sólidas, mas as deixam para trás como um sonho. Essas palavras poderiam muito bem ser ditas por Morpheus em um de seus discursos a Neo, mas na verdade são trechos do Evangelho da Verdade, um manuscrito do século IV encontrado em 1945 em um jarro enterrado no Egito. Ele faz parte de um conjunto de manuscritos chamado Nag Hammadi, que descreve a crença dos gnósticos, um grupo de cristãos que viveu entre os séculos II e V e possuía suas próprias escrituras, crenças e rituais. É a corrente cristã que mais se assemelha à Matrix.

"Eles acreditavam que nós iríamos acordar do mundo material e perceber que essa não era a realidade verdadeira", afirma a professora de história da religião Frances Flannery Dailey, do Hendrix College, nos Estados Unidos.

Não são poucas as referências que o filme faz ao cristianismo. Neo é tido como um messias e ressuscita no final do filme. Ele é amigo de Apoc (apocalipse) e Trinity (trindade em inglês). A última cidade humana, Zion, é uma referência a Sião, a antiga terra dos judeus, e a nave de Morpheus, Nabucodonosor, tem o nome do rei babilônico que aparece na Bíblia com um sonho enigmático que precisa ser decifrado.

Nenhuma religião, no entanto, tem tantas semelhanças com o filme quanto o budismo. O principal ponto em comum é a idéia de samsara ou maya, segundo a qual as nossas vidas são uma grande ilusão montada pelos nossos próprios desejos. É como se todo o mundo fosse, como diz Morpheus, uma projeção mental da sua personalidade. As pessoas estariam presas em um ciclo: elas tratam o que sentem como se fosse real e a ignorância de que aquilo é só uma ilusão as mantém presas a esse mundo. Em uma das cenas do filme, Neo encontra uma criança com trajes de monge budista que entorta uma colher com a mente. O segredo, diz ela, é saber que a colher não existe. Uma vez superada a ilusão, atinge-se o nirvana, um estado que as palavras não podem descrever, em que a noção de indivíduo se perde.

"Um dos maiores reforços desse ciclo de ignorância é o fato de estarmos cercados de pessoas que também tratam as ilusões como se fossem reais. Essa idéia foi bem retratada no filme como uma rede de computadores que liga as percepções dos indivíduos, permitindo que um reforce no outro a ilusão de um mundo que não existe", diz a historiadora Rachel Wagner, da Universidade de Iowa, que, assim como Frances, é autora de um texto comparando o filme às religiões.

O caminho para a transcendência é a busca pessoal pela iluminação, tanto para os budistas quanto para Morpheus, que afirma que ninguém pode explicar o que é a Matrix. Você precisa ver por você mesmo. Já Buda disse a seus seguidores: "Vocês próprios devem fazer o esforço; os que despertaram são apenas professores", e a mesma explicação poderia vir de Morpheus: "Estou tentando libertar sua mente, Neo. Mas eu só posso lhe mostrar a porta. Você é quem tem que atravessá-la." Pegou o espírito da coisa?

As coincidências são muitas, mas a essa altura você pode estar se perguntando se afinal os autores do filme realmente pensaram nisso tudo. Em uma de suas poucas declarações, os irmãos Wachowski disseram ser fascinados pelo budismo e querer colocar elementos da doutrina no filme. Boa parte das referências ao cristianismo também deve ser proposital devido ao grande número de termos bíblicos que aparece na obra. Eles talvez só não tenham tido a intenção de fazer uma alusão direta ao cristianismo gnóstico. Para os pesquisadores, isso é até mais interessante. Não há certeza sobre a origem do gnosticismo. Algumas pessoas sugerem que ele surgiu da interação entre o judaísmo e religiões como budismo e hinduísmo. Se os autores do filme misturaram conceitos judaico-cristãos com temas orientais e o gnosticismo surgiu como um resultado não-previsto, isso é muito intrigante, afirma Frances. Para aumentar a coincidência, o nome de Neo na vida real é Thomas, que também é o autor do principal evangelho gnóstico.

A discordância entre o filme e todas essas religiões é que, em Matrix, a salvação envolve muito quebra-pau. Enquanto as crenças pregam a paz e a não-violência, a exigência de Neo para salvar Morpheus são armas, muitas armas. O clímax de Matrix Reloaded, segundo filme da trilogia, é uma longa perseguição em uma rodovia que inspirou a maioria das cenas de ação dos últimos anos. Nada menos do que lutas de kung-fu no teto de um caminhão em movimento, corridas de moto na contramão, agentes pulando de um automóvel para outro e batidas suficientes para lotar dezenas de ferros-velhos. A cena foi a primeira a ser filmada. Para fazê-la, era preciso achar uma estrada que pudesse ser ocupada durante mais de dois meses e que, ainda por cima, tivesse um certo aspecto apocalíptico. Compreensivelmente, os diretores não encontraram um lugar adequado. A solução foi desembolsar 2,4 milhões de dólares para construir uma rodovia de 3,2 quilômetros com todos os detalhes em uma base naval na Califórnia, Estados Unidos. Bancar uma brincadeira dessas só foi possível devido aos mais de 300 milhões que eles tinham para fazer os dois filmes, uma quantia enorme até para os padrões de Hollywood.

Construir uma consciência artificial teria implicações muito maiores do que uma série de agentes Smith circulando por aí. Talvez isso seja a própria prova de que a nossa realidade seja de fato uma simulação por computador. Quem garante é o filósofo Nick Bostrom, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, que trabalhou com a possibilidade de um dia criarmos programas de computador que tenham consciência. Em um artigo publicado no mês passado na revista britânica Philosophical Quarterly, ele calcula que existam apenas três possibilidades para o futuro da humanidade. A primeira é que nós seremos extintos antes de construir esses programas, por azar ou porque eles são simplesmente impossíveis de serem feitos. A segunda é que, mesmo que nós possamos fazê-los, não haverá interesse da humanidade em inventá-los, talvez por problemas éticos. A terceira, mais perturbadora, é que nós um dia inventaremos essas consciências simuladas e universos virtuais inteiros para que elas tenham onde viver.

Nesses casos, as chances de alguém ter feito isso antes são muito grandes, e nós talvez fôssemos uma dessas simulações. Seríamos como na Matrix, com a única diferença de não termos um corpo em outra realidade. O cérebro também seria simulado, diz Bostrom. Tudo bem, sempre resta a esperança de que nós fôssemos o grupo que criou todas as consciências virtuais, o que ele chama de história original, mas isso seria muito improvável. Para Bostrom, existiriam tantas simulações que precisaríamos de muita sorte para estarmos justamente no único Universo que é real. As platéias para quem eu apresentei essa teoria ficaram intrigadas, mas por enquanto ninguém achou uma falha no meu argumento, diz Bostrom. A questão agora é descobrir qual das três propostas é a mais provável o palpite dele é que seja a segunda, e que as chances de que habitemos um mundo virtual estejam em torno de 25%.

Mesmo que o nosso mundo seja apenas uma realidade simulada, é possível que nossa vida não mude tanto. Afinal, já somos bombardeados tanto por notícias de lugares distantes, detalhes da vida de celebridades, programas de televisão, anúncios, filmes e tantas fotos e imagens que os nossos próprios assuntos ocupam um pedaço cada vez menor do nosso tempo. Essa é uma das teorias do único filósofo citado em Matrix, o francês Jean Baudrillard, autor do livro Simulacros e Simulação, onde Neo esconde os disquetes no início do filme. O curioso é que Baudrillard estaria mais para Cypher o rebelde que trai o grupo para voltar para a ilusão da Matrix do que para Morpheus. Baudrillard prefere trabalhar com a ironia e com os paradoxos a procurar um mundo mais verdadeiro, diz Juremir Machado da Silva, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, tradutor de muitas das obras do autor.

O próprio universo de Matrix, com suas cenas, efeitos e histórias envolventes, é capaz de nos transportar para um outro mundo que não vivemos e fazer com que nós fiquemos alegres, ansiosos e emocionados com acontecimentos que não fazem parte da nossa vida. Se os autores quiserem continuar nessa linha, é possível que, depois de tantas lutas e reviravoltas, Morpheus, Neo e os demais rebeldes percebam que a realidade que tanto lutaram para libertar não é muito mais real do que a que viviam na Matrix.