sábado, 16 de fevereiro de 2008

Por dentro da Matrix

Nesta última semana tive que assistir Matrix, para um trabalho na faculdade sobre ética em computação. Aí percebi como esse filme é bem mais do que aparenta ser... Uma obra inteligentíssima dos irmãos Wachowski. É interessante perceber que tudo o que está ali pode ser verdade! Opa, ficou chocado? Confuso?

Para as poucas almas que não viram Matrix, ele conta a história do hacker Thomas (Keanu Reeves), também chamado de Neo, que encontra um cara cheio de truques chamado Morpheus (Laurence Fishburne). Ele toma uma pílula vermelha e descobre então que todo o nosso mundo é uma realidade simulada por computadores, um enorme mundo virtual chamado Matrix. A verdadeira realidade é um futuro em que as máquinas tomaram conta do mundo e mantêm os humanos em pequenas cápsulas, onde sua energia é usada para abastecer um gigantesco sistema de inteligência artificial enquanto a mente deles é mantida em uma espécie de sonho que chamamos de realidade. Morpheus é o líder de um grupo de rebeldes que quer nos libertar das máquinas e acredita que Neo é o esperado salvador da humanidade, algo como um novo messias. Depois de muito treinamento, golpes de kung-fu, roupas sombrias e armas pesadíssimas, Neo consegue transcender a realidade de Matrix, desafiar as leis da física e ganhar poderes sobre-humanos.

Agora olhe à sua volta. Perceba os detalhes da sua cadeira, do lugar em que você está, da textura das suas roupas, do barulho na rua e das cores da parede da sua casa. Parecem reais? Eles não poderiam ser, por exemplo, uma simulação feita por um enorme sistema de inteligência artificial? Você pode achar que não, porque eles sempre estiveram ali e ao contrário dos computadores, cadeiras e paredes nunca travaram de uma hora para outra. Mas pense novamente. Existem muitas pessoas, muito inteligentes, que acham que isso pode ser verdade. Para elas, o mundo talvez não seja como imaginamos. Há até quem acredite que temos 25% de chances de viver mesmo em uma simulação de computador. Ou seja, talvez a trilogia iniciada em 1999 com o filme Matrix não seja tão despropositada quanto parece.

O enredo do filme não traz só questões filosóficas. Matrix é uma salada de vários tipos de arte feita pelos enigmáticos irmãos Larry e Andy Wachowski, responsáveis pelo roteiro e direção do filme. Entre as poucas informações que circulam a respeito deles está a de que devoram todo tipo de livro, de tratados filosóficos a histórias em quadrinhos. Talvez por isso, o filme tem ligações com muitas tecnologias e previsões feitas hoje pelos cientistas, além de citações a várias obras literárias. Os pequenos detalhes escondidos nas cenas do filme foram um dos principais fatores que levaram o DVD a bater recordes. Os fãs assistiam dezenas de vezes para perceber, por exemplo, que os objetos são predominantemente verdes no mundo da simulação e azuis na realidade. No entanto, a área de onde os diretores mais tiraram citações, nomes e referências foi o campo das religiões.

Os humanos eram ignorantes do que não podiam ver. Havia muitas ilusões, como se eles estivessem mergulhados no sono e se encontrassem em pesadelos. Eles estavam fugindo, perseguindo outros, envolvidos em ataques, caindo de lugares altos ou voando mesmo sem ter asas. Quando acordam, eles não vêem nada. Ao deixar a ignorância de lado, não estimam suas obras como coisas sólidas, mas as deixam para trás como um sonho. Essas palavras poderiam muito bem ser ditas por Morpheus em um de seus discursos a Neo, mas na verdade são trechos do Evangelho da Verdade, um manuscrito do século IV encontrado em 1945 em um jarro enterrado no Egito. Ele faz parte de um conjunto de manuscritos chamado Nag Hammadi, que descreve a crença dos gnósticos, um grupo de cristãos que viveu entre os séculos II e V e possuía suas próprias escrituras, crenças e rituais. É a corrente cristã que mais se assemelha à Matrix.

"Eles acreditavam que nós iríamos acordar do mundo material e perceber que essa não era a realidade verdadeira", afirma a professora de história da religião Frances Flannery Dailey, do Hendrix College, nos Estados Unidos.

Não são poucas as referências que o filme faz ao cristianismo. Neo é tido como um messias e ressuscita no final do filme. Ele é amigo de Apoc (apocalipse) e Trinity (trindade em inglês). A última cidade humana, Zion, é uma referência a Sião, a antiga terra dos judeus, e a nave de Morpheus, Nabucodonosor, tem o nome do rei babilônico que aparece na Bíblia com um sonho enigmático que precisa ser decifrado.

Nenhuma religião, no entanto, tem tantas semelhanças com o filme quanto o budismo. O principal ponto em comum é a idéia de samsara ou maya, segundo a qual as nossas vidas são uma grande ilusão montada pelos nossos próprios desejos. É como se todo o mundo fosse, como diz Morpheus, uma projeção mental da sua personalidade. As pessoas estariam presas em um ciclo: elas tratam o que sentem como se fosse real e a ignorância de que aquilo é só uma ilusão as mantém presas a esse mundo. Em uma das cenas do filme, Neo encontra uma criança com trajes de monge budista que entorta uma colher com a mente. O segredo, diz ela, é saber que a colher não existe. Uma vez superada a ilusão, atinge-se o nirvana, um estado que as palavras não podem descrever, em que a noção de indivíduo se perde.

"Um dos maiores reforços desse ciclo de ignorância é o fato de estarmos cercados de pessoas que também tratam as ilusões como se fossem reais. Essa idéia foi bem retratada no filme como uma rede de computadores que liga as percepções dos indivíduos, permitindo que um reforce no outro a ilusão de um mundo que não existe", diz a historiadora Rachel Wagner, da Universidade de Iowa, que, assim como Frances, é autora de um texto comparando o filme às religiões.

O caminho para a transcendência é a busca pessoal pela iluminação, tanto para os budistas quanto para Morpheus, que afirma que ninguém pode explicar o que é a Matrix. Você precisa ver por você mesmo. Já Buda disse a seus seguidores: "Vocês próprios devem fazer o esforço; os que despertaram são apenas professores", e a mesma explicação poderia vir de Morpheus: "Estou tentando libertar sua mente, Neo. Mas eu só posso lhe mostrar a porta. Você é quem tem que atravessá-la." Pegou o espírito da coisa?

As coincidências são muitas, mas a essa altura você pode estar se perguntando se afinal os autores do filme realmente pensaram nisso tudo. Em uma de suas poucas declarações, os irmãos Wachowski disseram ser fascinados pelo budismo e querer colocar elementos da doutrina no filme. Boa parte das referências ao cristianismo também deve ser proposital devido ao grande número de termos bíblicos que aparece na obra. Eles talvez só não tenham tido a intenção de fazer uma alusão direta ao cristianismo gnóstico. Para os pesquisadores, isso é até mais interessante. Não há certeza sobre a origem do gnosticismo. Algumas pessoas sugerem que ele surgiu da interação entre o judaísmo e religiões como budismo e hinduísmo. Se os autores do filme misturaram conceitos judaico-cristãos com temas orientais e o gnosticismo surgiu como um resultado não-previsto, isso é muito intrigante, afirma Frances. Para aumentar a coincidência, o nome de Neo na vida real é Thomas, que também é o autor do principal evangelho gnóstico.

A discordância entre o filme e todas essas religiões é que, em Matrix, a salvação envolve muito quebra-pau. Enquanto as crenças pregam a paz e a não-violência, a exigência de Neo para salvar Morpheus são armas, muitas armas. O clímax de Matrix Reloaded, segundo filme da trilogia, é uma longa perseguição em uma rodovia que inspirou a maioria das cenas de ação dos últimos anos. Nada menos do que lutas de kung-fu no teto de um caminhão em movimento, corridas de moto na contramão, agentes pulando de um automóvel para outro e batidas suficientes para lotar dezenas de ferros-velhos. A cena foi a primeira a ser filmada. Para fazê-la, era preciso achar uma estrada que pudesse ser ocupada durante mais de dois meses e que, ainda por cima, tivesse um certo aspecto apocalíptico. Compreensivelmente, os diretores não encontraram um lugar adequado. A solução foi desembolsar 2,4 milhões de dólares para construir uma rodovia de 3,2 quilômetros com todos os detalhes em uma base naval na Califórnia, Estados Unidos. Bancar uma brincadeira dessas só foi possível devido aos mais de 300 milhões que eles tinham para fazer os dois filmes, uma quantia enorme até para os padrões de Hollywood.

Construir uma consciência artificial teria implicações muito maiores do que uma série de agentes Smith circulando por aí. Talvez isso seja a própria prova de que a nossa realidade seja de fato uma simulação por computador. Quem garante é o filósofo Nick Bostrom, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, que trabalhou com a possibilidade de um dia criarmos programas de computador que tenham consciência. Em um artigo publicado no mês passado na revista britânica Philosophical Quarterly, ele calcula que existam apenas três possibilidades para o futuro da humanidade. A primeira é que nós seremos extintos antes de construir esses programas, por azar ou porque eles são simplesmente impossíveis de serem feitos. A segunda é que, mesmo que nós possamos fazê-los, não haverá interesse da humanidade em inventá-los, talvez por problemas éticos. A terceira, mais perturbadora, é que nós um dia inventaremos essas consciências simuladas e universos virtuais inteiros para que elas tenham onde viver.

Nesses casos, as chances de alguém ter feito isso antes são muito grandes, e nós talvez fôssemos uma dessas simulações. Seríamos como na Matrix, com a única diferença de não termos um corpo em outra realidade. O cérebro também seria simulado, diz Bostrom. Tudo bem, sempre resta a esperança de que nós fôssemos o grupo que criou todas as consciências virtuais, o que ele chama de história original, mas isso seria muito improvável. Para Bostrom, existiriam tantas simulações que precisaríamos de muita sorte para estarmos justamente no único Universo que é real. As platéias para quem eu apresentei essa teoria ficaram intrigadas, mas por enquanto ninguém achou uma falha no meu argumento, diz Bostrom. A questão agora é descobrir qual das três propostas é a mais provável o palpite dele é que seja a segunda, e que as chances de que habitemos um mundo virtual estejam em torno de 25%.

Mesmo que o nosso mundo seja apenas uma realidade simulada, é possível que nossa vida não mude tanto. Afinal, já somos bombardeados tanto por notícias de lugares distantes, detalhes da vida de celebridades, programas de televisão, anúncios, filmes e tantas fotos e imagens que os nossos próprios assuntos ocupam um pedaço cada vez menor do nosso tempo. Essa é uma das teorias do único filósofo citado em Matrix, o francês Jean Baudrillard, autor do livro Simulacros e Simulação, onde Neo esconde os disquetes no início do filme. O curioso é que Baudrillard estaria mais para Cypher o rebelde que trai o grupo para voltar para a ilusão da Matrix do que para Morpheus. Baudrillard prefere trabalhar com a ironia e com os paradoxos a procurar um mundo mais verdadeiro, diz Juremir Machado da Silva, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, tradutor de muitas das obras do autor.

O próprio universo de Matrix, com suas cenas, efeitos e histórias envolventes, é capaz de nos transportar para um outro mundo que não vivemos e fazer com que nós fiquemos alegres, ansiosos e emocionados com acontecimentos que não fazem parte da nossa vida. Se os autores quiserem continuar nessa linha, é possível que, depois de tantas lutas e reviravoltas, Morpheus, Neo e os demais rebeldes percebam que a realidade que tanto lutaram para libertar não é muito mais real do que a que viviam na Matrix.

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